quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Filha do Verso

Bendito seja o Verso
que me fez fruto de seu ventre.

Bendito seja Aquele
que me colheu ainda verde,
me alimentou com verbos
e me aliciou com rimas.

Bendito seja o meu Pai
que em minha parca mesa
jamais deixou faltar
a Palavra Nossa de cada dia.

Bendito seja
O que jamais desistiu de mim
mesmo quando eu, dadaísticamente,
desisti Dele.

Bendito seja
O que pacientemente entendeu meu hiato
e religiosamente me apresentou os ditongos,
tritongos, quadratongos, pentatongos!

Bendito seja
O que com as pedras no meio do caminho
me construiu inteira e depois disse:
agora desconstrói.

Bendito seja O que antes havia me ensinado
como é possível fazer da palavra concreto
abstrato.

Bendito seja O que me revelou a liberdade
e a possibilidade de ser
eu
lírico.

Você lírico, qualquer um lírico.

Bendito seja
O que com um lápis
me deu o mundo.

v

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Um café, por favor

Sem açúcar, sem afeto. Um café preto, amargo, que tire o travo da noite. Um café pesado para ser tomado num quarto de janelas cerradas: as cortinas fechadas, o ar abafado, as roupas no chão, a chave no móvel, um copo vazio e eu: de cabelos bagunçados e rosto borrado.

Eu quase em farrapos, deitada, jogada na cama. Eu que na cama mesmo escrevo, com as mãos trêmulas, a noite de minha coroação. A noite em que os olhos se voltaram para mim, em que os pedestres abriram passagem enquanto alguns reles me carregavam no braço. A noite de minha embriaguez.

E é para voce que eu dedico estas letras tortas. Porque foi por você que eu bebi aquele vinho doce, foi por todos os seus sorrisos, todos os nossos risos, todas as nossas noites. Foi pela saudade que eu intercalei uma taça de água com uma de álcool.

Foi por você que eu pedi uma cerveja. E foi por ter me abandonado tantas vezes que virei aqueles copos. Foi pela raiva, pela solidão. Pelas nossas brigas, pelos nossos gritos. Pela minha dor.

O licor foi pelo seu pulso fraco. Foi por você sempre aparecer no final do dia fazendo promessas bonitas. A terceira dose foi por eu sempre ceder.

Com a cachaça eu bebi as outras mulheres. Bebi o ciúmes. Bebi meu descontrole, minha dependência. Bebi a goles rápidos minha fragilidade.

O último copo - eu já nem lembro de quê - foi pelas ilusões. Por todas as noites que eu gastei pensando e acreditando em soluções para nós dois.

Fiquei em pé, decidida a ir embora, dei dois passos e -

vomitei.

Vomitei você no meio de pudores e pessoas comedidas. Vomitei seu amor com gosto de bile, seu amor amargo e indigesto.

Me levaram para fora e me deixaram em companhia de esgotos. Eu, ali, caída no asfalto com o cabelo melado da gosma amarela que me escorria da boca, os olhos pretos manchados, uma barata subindo pela perna e um mau-cheiro terrível.

Eu, Rainha da Sujos. Eu, Rainha dos Ratos, dos Rotos. Dos Rejeitados. Rainha do Erro, Rainha dos Fracos, Rainha dos Loucos. Mas: Eu, Rainha de Mim Mesma.

Eu, rindo, enquanto os olhares de asco se acumulavam em volta. Eu, gritando os meus títulos nobres, gritando minha liberdade: você ficaria ali no vômito, misturado ao almoço do dia
e atraindo baratas.

As pessoas, acostumadas a pintar o mundo de rosa, taparam os olhos das crianças e procuraram não respirar aquele odor desagradável. E porque eu causava repulsa, me carregaram pra casa, enquanto gritava:

Nojo? Essa imundície é o amor!

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