quarta-feira, 17 de agosto de 2011

O poema que eu não escrevi

“Vocês perdem coisas todos os dias. Algumas tão pequenas, que nem notam. Outras fazem tanta falta.”



Arlene Hermínia




Este é o primeiro dia dos pais que passo sem você. Nunca fomos de comemorar datas, mas hoje eu daria tudo por um almoço no Depan. Arroz chop suey, frango empanado, molho agridoce e meia porção de família feliz. Família feliz: quem diria que a nossa história viria cifrada – tão doloridamente – no nome de um prato da culinária chinesa? Não soubemos reparar que em todos aqueles domingos, brincando de forca enquanto a refeição ficava pronta, nós estávamos, ali, sendo uma porção inteira de família feliz. Muitas vezes (e, aliás, quase todas) com pequenos (ou grandes) desentendimentos. Mas isso não desfaz nosso conjunto, não desfaz nossa felicidade.


Não estou me deixando esquecer dos equívocos por causa da ausência, nem simplificando a complexidade das relações. Ao contrário, agora com mais maturidade, estou compreendendo que a luta, o esforço, o suor, o desencontro fazem parte do amor. Já é tempo de deixar cair esse ideal de sentimento sublime, que nos invade, e envergonha com pudores as histórias de cada lar. Tivemos, sim, nossas brigas, loucuras, infelicidades. Raivas, ódio, gritos, feridas. Mas quem nos fez acreditar que isso não faz parte do amar? Talvez se desde pequenos aprendêssemos que a dor pertence ao ser feliz, então talvez perdêssemos menos tempo tentando superar esses conflitos e soubéssemos aceitar honestamente a subjetividade do outro.


Afinal, é isso que é se relacionar, uma troca. E existe verbo mais lindo que trocar? Eu lhe dou e você também me dá. Permuta. Equivalência. Só não entendemos que, no fundo, a única coisa que podemos oferecer é a nossa própria história de vida. Como vou exigir que seja uma pessoa tranquila se sua criança precisou estar em alerta para sobreviver? Como vou exigir que me ofereça outra coisa senão o seu passado em forma de superação ou similitude? É preciso saber aceitar e desejar o que o outro pode dar. É preciso aprender a ser amado.


Sei que algumas dessas feridas ficam como manchas difíceis de tirar, mas isso é lá com Freud e as artimanhas do inconsciente... Aqui, meu compromisso é dizer que eu lhe perdoo, pai. Eu lhe perdoo e também peço perdão – por tudo que tentamos e não conseguimos ser. Estou lutando, me esforçando, suando para que o verdadeiro amor se instale entre nós. Sim, você está comigo, e estará sempre, ecoando em meus gestos e falas. Nada do que inauguramos em seus últimos meses termina com a matéria. Nada do que inauguramos em vida termina com a morte. Nada.


Por isso eu quero, aqui, lhe dizer que estou aprendendo a ser amada. Estou aprendendo a relembrar seu jeito contundente, grave, calado e me sentir amada. Estou entendendo que seu silêncio era amor inteiro, matéria bruta, era o que de mais profundo você podia oferecer. Desculpe-me, pai, eu é que era apenas uma menina e não soube alcançar. Eu não soube compreender que por trás da função de ser herói havia um ser humano, com angústias, vazios, mágoas, carências, humilhação, vergonha, desespero. Havia alguém que para sobreviver aprendeu que tudo isso deveria ser emudecido pela força da superação. Mas agora eu começo a entender que você abdicou de suas fragilidades por nós. Começo a entender que o seu significado de ser pai era segurança. Você abriu mão de seus desejos para que eu pudesse querer e das suas lágrimas para que eu pudesse chorar.


Às vezes eu caio num buraco imenso, me revolto, acho injusto. Deveria ter sido eu. Eu que falo pelos cotovelos; eu que de alguma maneira ainda tenho a literatura; eu que faria escândalo, gritaria com o mundo e com Deus; eu que mandaria pro inferno os princípios; eu que tive espaço para desejar e sofrer. Mas foi você, homem contido. Dói tanto, tanto imaginar sua luta em solidão... Será que você chegou a encarar diretamente a morte? Será que você experimentou as coisas com o medo e a dor de ser última vez? Será que você teve saudade do futuro que iria perder? Será que você imaginou o mundo sem você? Quem consola o desespero de um homem solitário?


Lembro-me daquela madrugada em que você se levantou, já enfrentando a doença, e me perguntou como se fazia um poema. Por que, meu Deus, eu não parei tudo naquele momento para lhe falar dos decassílabos? Por que eu não lhe expliquei a teoria dos versos? Dando-me o tema, você queria que eu escrevesse por você; e eu quis que você mesmo tentasse com o papel. Apenas lhe falei que poesia se fazia com a expressão dos sentimentos. Levantei-me e fui dormir, lhe deixando com o silêncio. Por quê? Por que eu não fiquei com você até o dia clarear? Por que eu não lhe expliquei as rimas? Pai, eu só queria que você tentasse, eu queria lhe ajudar.


Jamais perdoarei as instituições que construíram a literatura e a escrita como nobres, grandes e intocáveis. Eu sei que você teve receio de produzir versos tortos. Mas é um mito cruel esse de que é preciso talento ou técnica para desbravar o papel. Mentira: é preciso coragem, somente. Sofro por você e por todos aqueles que, inibidos pelo erro, não podem partilhar da companhia da palavra.


O que você teria escrito em seu último poema?


Em dias melhores, consigo sair do buraco e estar mais serena. Mesmo com memórias de sua dor, volto a acreditar na sabedoria do universo. Tudo tem um motivo para ser como é – e portanto eu me entrego às coisas como são. Então, consigo ver com gratidão nossos meses de luta. O imenso sofrimento do corpo nos acordou para a troca profunda. Nesses meses, pudemos ser o que a rotina comum havia desgastado: pai e filha. Redescobrimos o abraço, o toque, o diálogo. E aprendemos, todos, a acreditar na vida. Se naquela madrugada me levantei e fui dormir, é porque eu acreditava na cura. Imaginava que teríamos tempo para os poemas do mundo inteiro. Os médicos não avisaram que só nos restava um soneto.


Em dias melhores, vejo que não poderia ser diferente. Acreditar na vida foi a sua dignidade. Nada nem ninguém haveria de escolher por você: você, como sempre, estava no controle. Continuou a fazer suas escolhas, com coragem, força, lucidez. Continuou a comer o que lhe apetecia, sorrir, viajar. Você não abriu não de ser o homem que você quis ser. Um grande homem.


Curar-se não é superar a morte, é livrar-se das defesas para abrir o coração. E você, pai, fez de si um coração aberto. Me acalanta lembrar daquele sábado de sol. Você mostrou pulsão de vida para ir à praia, lavar a alma com água salgada, ser abraçado pelo sol. Na volta, olhando para o mar, você chorou. Essas lágrimas foram aquele poema que eu não escrevi. Essas lágrimas foram poesia escorrendo dos olhos. Pai, você chorou – e curado está aquele que chora diante do mar.


Muito, muito obrigada por tudo. Estaremos sempre juntos, você é o meu amuleto.


Te amo,


vivi


14 de agosto de 2011
Dia dos pais