domingo, 11 de setembro de 2016

Eu, João e Maria

Tenho rabiscos espalhados pelo
corpo
pela casa 
pela estrada.

Numa espécie de João e Maria,
abandonei versos 
pelo caminho
para não me perder.

Deixei  por aí
pedaços de poesia
para não me esquecer
de quem eu sou,
para me lembrar
pra onde eu vou 

para saber por onde voltar.

Deixei rimas como pistas
tatuadas nas paredes,
porque caso eu enlouqueça
algo precisa me salvar de
estar à deriva
em meu próprio labirinto.

Me preveni espalhando palavras
pelas esquinas
para que quando eu envelheça
esqueça de nomes e datas
mas que eu não morra enquanto
estiver viva.

Fiz um estoque de estrofes,
melodia engarrafada,
suprimento
para a grande guerra fria
que inverna
em minha alma.

Líricos vestígios
que me recordem
por onde eu passe:
se tudo mais falhar,
o poema é um abrigo.

v


terça-feira, 9 de agosto de 2016

Dentro de mim

Há um armário
fechado.

Dentro do armário,
uma gaveta
trancada a chaves.

Dentro da gaveta,
uma caixa
bem lacrada.

Dentro da caixa,
enrolada em papel manteiga,
eu guardo uma dor
profunda
e dilacerante.

(A senha para abrir
o cadeado é:
p_o_e_s_i_a)

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Poema de maré e seca

Tudo quieto
e seco:
não chove
em meu coração.

Parece pacífico
porque não há sangue
mas não sangra porque
nada escorre:
em peito agreste,
lágrima não pinga -
vira poeira.

Coração caatinga
castigado
tem sede.

Boca quer gritar
pedir ajuda
mas saliva sem água
é cimento
que a mantém
cerrada.

Coração em crosta
de açude enrugado
espera vazio
cair a seiva em suas
veias abertas,
mas céu nada oferece
senão fogo
dissipado no ar.

Coração febril
lateja
sob o sol em brasa
de sua terra despovoada.

Sozinho,
aprende que viver é
resistir.

E morto, mudo, magro
sobrevive.

Coração deserto
é flor sem viço de um jardim
de ossos.
A única fonte que o umedece
é a fé nos versos
do profeta:

O ser tão vai vir amar
e amar
virá a ser tão.

v


sábado, 20 de junho de 2015

Pode entrar (Pequena crônica noturna)



Numa madrugada chuvosa, fui à cozinha preparar um chá para esquentar os sonhos... e reparei que havia esquecido a janela aberta. Me aproximei para fechá-la, mas um movimento nas plantinhas que povoam sua beirada me assustou. Fui surpreendida pela presença de um bicho  visita tão rara na concreta altura dos apartamentos. 
Era uma borboleta, que parecia respirar assustada. Meu reflexo urbano foi o de colocá-la para fora, mas, de repente, notei a chuva, me dando conta de que ela procurava um abrigo. Então, senti que não poderia espantá-la: noites de frio são noites de solidariedade; e resolvi deixar a pequena voadora no acolher das minhas plantas.
Quando o susto passou, me flagrei orgulhosa, como se a natureza tivesse intuído que, entre tantas janelas, a minha casa é um lugar seguro para se abrigar.

domingo, 22 de fevereiro de 2015

Pequeno pedido pra você me levar

Como eu vou voltar
pra casa e refazer
sozinha
os caminhos que a gente fez
de mãos dadas?

v

sábado, 6 de dezembro de 2014

Poema de uma só folha (ou Poema para lhe consolar de um dia ruim)

Este é um poema
de uma só folha
para que, dobrado, caiba
em seu bolso
ou
para que torcido uma vez mais
habite pequeno em sua carteira.

É um poema para lhe acompanhar
aonde eu não puder alcançar
para ecoar
quando eu não puder segurar
para suportar
enquanto eu não puder insistir.

É um poema
para lhe consolar de um dia ruim
quando, ao fim dele,
eu não puder estar.

É um poema
para me acalmar
quando, por aí, você tiver fome
e eu não puder lhe alimentar.

É um poema para lhe afagar
quando algum fantasma lhe assustar
e eu não puder lhe proteger.

É um poema para você não esquecer
do que eu não puder lhe lembrar.

É um poema
para me desculpar
quando, em um dia ruim, eu, mulher pequena,
não puder lhe oferecer mais nada
além do meu pequeno amar.



domingo, 6 de julho de 2014

Poeminha testamento


Para Maria,
deixo aquele vestido
que há muito me havia pedido.

Para José,
deixo pequena renda
que lhe sirva em sua venda.

Para João,
deixo meu violão
e que sempre me lembre num samba-canção.

Para você
deixo uma arca
guardada embaixo da cama
cheia de rimas perdidas.


v
2008