segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Retrato de uma alma abandonada



Eu? Eu entardeci muito cedo. Mal despontara a aurora de minha criança e já era tempo de recolher-se a casa... Junto ao sol, também se pôs minha leveza e credulidade pueril, restando em mim apenas a terrível melancolia do lusco-fusco. É por isso eu ainda nem completara a décima primavera, mas então padecia com a tristeza que abate a cidade no limbo dos astros - quando já findou o dia, mas a noite ainda não veio.
Nessas horas busquei ansiosa um olhar cúmplice que guardasse ao fundo, sempre ao fundo, um sutil desespero: o desespero de existir e saber que se existe. Mas as crianças são por demais distraídas e os adultos fugiam de minha pupila como quem apressa o passo para ignorar o pedinte. Tudo que desejava não era nada além de um abraço apertado, um longo abraço, que num suspiro quente sanasse o meu vazio. Enfim eu pude descobrir que a outra face do desespero é a solidão: e restei sozinha, mendiga da alma...


v

domingo, 8 de setembro de 2013

Manifesto pro homem feminista

Não adianta, homem,
salvar as mulheres na luta
se tua própria mulher
você trata como puta,
quando me deita em sua cama,
recita versos pra dizer que ama
e no dia seguinte
me paga com silêncio.

Pois veja, homem,
tire o seus óculos e veja
me veja.

Tem uma mulher em sua frente
que sente
que sofre
que quer mais do que data no calendário e
igualdade de salário

Tudo isso vale o grito,
mas igualdade mesmo
é ter um mundo que me veja.

Que veja as marcas dos tapas
que eu levei fora da transa,
por um homem que não me bate
mas que ignora meu olhar,
joga fora minha doçura,
não assume que procura
e vai embora sem enxergar que abandona.

Igualdade é viver em um mundo
que não me estupre desde pequena
com matemáticas absurdas sobre o que dizem ser amar.

Onde pra ter
eu tenho que negar,

e pra negar
eu tenho que fingir aceitar.

No fundo, o que esse homem
tá tentando me ensinar
é que eu não tenho direito de querer.
Tenho que calar
e aprender a encantar
sendo bonitinha
e covarde,

porque tenho que me deixar convencer
que minha paixão é loucura
e tenho que saber engolir
quando ele me faz ferir
com esse papo pós moderno
de que pode fugir porque não tem compromisso sério.

Nem parece o mesmo homem
que de bandeira levantada
defende respeito, compromisso e feminismo
E que tanto fala em companheirismo
sem verdadeiramente compreender
que ser companheiro é mais do que ideologia
que revolucionar é mais do quer romper burocracia.
e que acompanhar é mais do que marchar.

Ser companheiro é
não ter receio de cuidar
dessa que você invade com um beijo
e depois some,

dessa a quem você estende a mão
pra que se entregue nua
e depois despreza.

Não adianta, homem,
gritar coragem nas ruas,
se em teu próprio asfalto é você
que tem medo

e não sabe pedir ajuda.

v



quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Humanidades

Sou abraço apertado na hora do choro
Sou choro besta em filme romântico
Sou pés namorando embaixo dos lençóis
Sou sol em pleno domingo
Sou achar o que estava perdido
Sou presente de natal
Sou comida de festa no dia seguinte
Sou segredo ao pé do ouvido
Sou fevereiro em carnaval
Sou cachorro lambendo o rosto
Sou acordar com tudo pronto
Sou dançar desengonçado
Sou primeiro namorado
Sou se deitar emboladinho
Sou você pequenininho
Sou conversar até tarde no telefone
Sou cantar bem alto no chuveiro
Sou comida de vó na hora da fome
Sou enfiar o pé na lama
Sou cheiro gostoso no cangote
Sou ficar até tarde na cama
Sou riso até doer a barriga
Sou cheiro de terra molhada
Sou rede na varanda
Sou descobrir dinheiro no bolso
Sou enfiar o dedo no bolo
Sou cabelo bagunçado
Sou mãe fazendo carinho
Sou Chico cantando baixinho
Sou férias começando
Sou xixi depois do aperto
Sou pôr-do-sol alaranjado
Sou maracatu de baque virado

Sou detalhes
Sou nuances
Sou pequenas humanidades

v
2008


Ouça este poema recitado: